Esquemorfismo e a Resistência da Imagem
- Angela Rosana

- 26 de nov.
- 3 min de leitura
O esquemorfismo nasceu como um artifício do design: um modo de fazer com que objetos digitais imitassem traços de objetos físicos. Ícones de disquete que continuam a significar “guardar”, envelopes que representam e-mails, texturas de couro em aplicativos que nunca tocaram um material real. Esses sinais sobreviventes não têm mais função prática, mas carregam a memória de um mundo anterior à tela. São resíduos de uma materialidade perdida, pequenas âncoras que mantêm a experiência digital ligada a modos de relação que já não existem. No fundo, funcionam como cicatrizes do passado que persistem mesmo quando o corpo que as originou desapareceu.
A imagem contemporânea vive um paradoxo curioso: quanto mais se aproxima da perfeição técnica, mais parece afastar-se de qualquer experiência vivida. É nesse cenário que certos “defeitos” voltam a ganhar importância. O borrão que denuncia o movimento rápido, o flash que invade a cena com uma luz abrupta, a compressão que trinca o pixel como uma superfície ressecada, tudo isso reaparece como insistência de que ainda há corpo por trás da lente. Não são falhas gratuitas, e sim modos de interromper o polimento uniforme que a IA impõe às imagens. Marcas de uma presença que se nega a desaparecer.
Quando aproximamos esse fenômeno do esquemorfismo, algo começa a fazer sentido. Se o esquemorfismo preserva a sombra de objetos que deixaram de existir, esses defeitos preservam a sombra da presença humana num ecossistema visual que tenta apagá-la. No primeiro caso, permanece a forma de um passado material. No segundo, permanece o traço de um corpo que ainda se move. Ambos se apoiam na mesma necessidade: impedir que a imagem se torne um território sem rastro, um espaço onde nada deixa marca.
À medida que esse paralelismo se torna mais evidente, percebemos que a discussão não gira somente ao redor de técnicas ou escolhas estéticas. Há um desconforto latente que atravessa a produção visual contemporânea. A imagem deixou de ser somente registro para assumir o papel de superfície aperfeiçoada, continuamente ajustada por algoritmos que corrigem cor, nitidez, enquadramento e até mesmo expressões faciais. Nada foge do refinamento automático, e por isso qualquer ruído, que pode aparecer num pixel partido, num brilho abrupto ou num desfoque inesperado, ganha uma força que não tinha antes. Esses pequenos acidentes mostram que a imagem não se esgota no cálculo. Há algo nela que não é previsível, algo que continua vivo mesmo dentro do aparato técnico que tenta uniformizar tudo.
Nesse ponto, o esquemorfismo ilumina um movimento mais vasto de salvaguarda da memória sensível. Quando uma interface imita couro, papel ou madeira, não está a tentar reproduzir a realidade, mas a reafirmar que a experiência pré-digital ainda ecoa dentro da nova linguagem. Do mesmo modo, quando uma imagem exibe uma imperfeição que poderia ser eliminada com um clique, está a sugerir que existe algo ali que não se reduz a uma operação técnica. Tanto o esquemorfismo quanto a imperfeição revelam um desejo de continuação: a continuidade de um olhar que não aceita ser apagado pela eficiência da máquina.
No fundo, tanto o esquemorfismo quanto as imperfeições que atravessam a imagem respondem a uma necessidade de permanência que não se cumpre pela via da perfeição. A tecnologia aposta na lisura, mas algo nas imagens continua a produzir pequenas resistências, como se nelas permanecesse um resto de matéria à procura de lugar. O digital carrega sinais herdados e sinais que surgem no instante da captura, e essa convivência cria uma zona onde a imagem já não é pura superfície nem simples simulacro. Há nela uma sobrevivência discreta, um movimento que insiste, mesmo quando tudo em torno avança para o apagamento.

Entre vestígios que retornam e perturbações mínimas, essas formas de ver abrem espaço para aquilo que não se deixa dissolver. A imagem segue porque conserva essas marcas residuais, porque ainda admite o seu próprio atraso em relação à máquina. Como explicar essa presença que resiste onde tudo parece destinado a desaparecer?
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