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Esquemorfismo e a Resistência da Imagem


Reflexo de pessoas caminhando numa rua urbana, visto através de uma poça d’água. A imagem aparece invertida, mostrando pedestres andando perto de uma fachada com portas e janelas
Foto por Ivan Martínez 🇪🇸

O esquemorfismo nasceu como um artifício do design: um modo de fazer com que objetos digitais imitassem traços de objetos físicos. Ícones de disquete que continuam a significar “guardar”, envelopes que representam e-mails, texturas de couro em aplicativos que nunca tocaram um material real. Esses sinais sobreviventes não têm mais função prática, mas carregam a memória de um mundo anterior à tela. São resíduos de uma materialidade perdida, pequenas âncoras que mantêm a experiência digital ligada a modos de relação que já não existem. No fundo, funcionam como cicatrizes do passado que persistem mesmo quando o corpo que as originou desapareceu.


Fragmentos de vidro quebrado vistos de perto, revelando um carro enferrujado desfocado ao fundo através das frestas do vidro estilhaçado
Foto por JG | Travel Photography 🇺🇸

A imagem contemporânea vive um paradoxo curioso: quanto mais se aproxima da perfeição técnica, mais parece afastar-se de qualquer experiência vivida. É nesse cenário que certos “defeitos” voltam a ganhar importância. O borrão que denuncia o movimento rápido, o flash que invade a cena com uma luz abrupta, a compressão que trinca o pixel como uma superfície ressecada, tudo isso reaparece como insistência de que ainda há corpo por trás da lente. Não são falhas gratuitas, e sim modos de interromper o polimento uniforme que a IA impõe às imagens. Marcas de uma presença que se nega a desaparecer.


Cena em preto e branco de uma pessoa em pé no alto de uma escada, iluminada por um feixe forte de luz. As paredes laterais e o teto criam uma área escura ao redor da figura
Foto por Sandro Alves 🇧🇷

Quando aproximamos esse fenômeno do esquemorfismo, algo começa a fazer sentido. Se o esquemorfismo preserva a sombra de objetos que deixaram de existir, esses defeitos preservam a sombra da presença humana num ecossistema visual que tenta apagá-la. No primeiro caso, permanece a forma de um passado material. No segundo, permanece o traço de um corpo que ainda se move. Ambos se apoiam na mesma necessidade: impedir que a imagem se torne um território sem rastro, um espaço onde nada deixa marca.


Sombra de uma pessoa projetada numa parede bege com desenhos infantis coloridos. Há sombras de galhos e folhas na parte superior da parede
Foto por Maialu Ferlauto 🇧🇷

À medida que esse paralelismo se torna mais evidente, percebemos que a discussão não gira somente ao redor de técnicas ou escolhas estéticas. Há um desconforto latente que atravessa a produção visual contemporânea. A imagem deixou de ser somente registro para assumir o papel de superfície aperfeiçoada, continuamente ajustada por algoritmos que corrigem cor, nitidez, enquadramento e até mesmo expressões faciais. Nada foge do refinamento automático, e por isso qualquer ruído, que pode aparecer num pixel partido, num brilho abrupto ou num desfoque inesperado, ganha uma força que não tinha antes. Esses pequenos acidentes mostram que a imagem não se esgota no cálculo. Há algo nela que não é previsível, algo que continua vivo mesmo dentro do aparato técnico que tenta uniformizar tudo.


Retrato em preto e branco de um homem visto de perfil, com o rosto em sombra e uma cortina clara desfocada ao fundo
Foto por Gilberto Perin 🇧🇷

Nesse ponto, o esquemorfismo ilumina um movimento mais vasto de salvaguarda da memória sensível. Quando uma interface imita couro, papel ou madeira, não está a tentar reproduzir a realidade, mas a reafirmar que a experiência pré-digital ainda ecoa dentro da nova linguagem. Do mesmo modo, quando uma imagem exibe uma imperfeição que poderia ser eliminada com um clique, está a sugerir que existe algo ali que não se reduz a uma operação técnica. Tanto o esquemorfismo quanto a imperfeição revelam um desejo de continuação: a continuidade de um olhar que não aceita ser apagado pela eficiência da máquina.


Interior de uma sala vista através de um vidro que reflete plantas externas. No centro, há uma mesa redonda com toalha estampada e um gato deitado sobre ela. Cadeiras cercam a mesa e objetos decorativos ocupam a parede ao fundo
Foto por Vani Aprigio 🇧🇷

No fundo, tanto o esquemorfismo quanto as imperfeições que atravessam a imagem respondem a uma necessidade de permanência que não se cumpre pela via da perfeição. A tecnologia aposta na lisura, mas algo nas imagens continua a produzir pequenas resistências, como se nelas permanecesse um resto de matéria à procura de lugar. O digital carrega sinais herdados e sinais que surgem no instante da captura, e essa convivência cria uma zona onde a imagem já não é pura superfície nem simples simulacro. Há nela uma sobrevivência discreta, um movimento que insiste, mesmo quando tudo em torno avança para o apagamento.


Duas crianças dentro de um carro, vistas através de uma superfície desfocada. Uma delas, com chupeta, está sentada na cadeirinha; a outra se inclina para perto, segurando um lápis
Foto por Rocio Marin Perez 🇫🇷

Entre vestígios que retornam e perturbações mínimas, essas formas de ver abrem espaço para aquilo que não se deixa dissolver. A imagem segue porque conserva essas marcas residuais, porque ainda admite o seu próprio atraso em relação à máquina. Como explicar essa presença que resiste onde tudo parece destinado a desaparecer?


Escrito por Angela Rosana saiba mais sobre mim aqui.  

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