A Faísca das Falhas: Onde o Algoritmo se Perde
- Angela Rosana
- 20 de jul.
- 4 min de leitura
Atualizado: 21 de jul.
Se há um horror diante do próprio sentido de ser, ele não está em sermos sujeitos, mas no apagamento do que sustenta o ser em nós. Essa "verdade presumida" pode estar para além do excesso de realidade, no que foi soterrado para que ela parecesse inteira. É no silenciamento da dúvida, no asfixiamento do erro, na extinção do desvio que se instala a verdadeira catástrofe. Não é o humano que falha: é o mundo que se recusa a escutá-lo em sua hesitação. A aceleração não nos arrasta porque somos lentos, mas porque rompemos o compasso com o tempo. Substituímos a criação pela eficiência, o espanto pela performance.
O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, em um dos seus diagnósticos mais agudos, escreveu que anestesiamos a negatividade essencial da experiência em nome de uma positividade operante, produtiva, incansável. E assim, o que deveria ser linguagem virou código. O que era imagem virou dado. O que era arte tornou-se ruído branco, anestesia da potência. O movimento, a falha, a oscilação: tudo o que fazia da existência algo mais que cálculo foi apagado. E o que restou não é potência, é desempenho. O pavor, se há, está no que já não nos é permitido ser.
Não há máquina mais eficiente do que aquela que aprende a simular afeto. Quando a subjetividade é codificada em algoritmo, a singularidade deixa de ser acontecimento para tornar-se variável de previsão. Tudo o que em nós era rasura, rastro, intervalo; tudo isso precisa ser limado, adaptado e otimizável. Não mais a pergunta, mas a resposta; não mais o silêncio, mas o som limpo daquilo que já vem moldado à escuta. A linguagem, antes espaço de deriva, torna-se diretiva. O olhar, que antes vagava, passa a mirar com precisão laser. O tempo? Apenas delay entre entrada e saída de dados. Nesse cenário, só se pode ver o erro como um ruído a ser corrigido. Jamais como uma fresta por onde a criação escapa. E é assim que se mata um milagre: tornando-o apenas estatística.
Quando tudo já foi codificado, previsto, acelerado, o que nos resta de verdadeiramente humano pode ser somente aquilo que escapa, não por erro, mas por decisão. Persistir na falha, quando tudo exige precisão, pode ser o nosso último sopro de insubmissão. Não como inadequação, mas como recusa: da transparência, da utilidade, da lógica que transforma toda linguagem em resposta. A falha, nesse cenário, não é ausência de potência, mas sua deformação deliberada. É o corpo que desacelera quando tudo corre. O olhar que se perde onde tudo precisa focar. Aquilo que titubeia, que ainda demora. Cair fora do eixo, onde só se tolera o que se encaixa, pode ser o único modo de conservar aquilo que não pactua com forma alguma.
Se há algo que ainda resiste à lógica da aceleração, é a criação, não por se opor a ela, mas por operar num outro regime. Não se trata de voltar a um tempo lento, mas de sustentar um ritmo próprio, em dissonância com o que se espera. A arte, quando se recusa a tornar-se função, não é decorativa nem ilustrativa: é interrupção. Sua força está em interromper o curso regular da compreensão e criar zonas onde a previsibilidade falha, onde a linguagem se dobra sobre si e a imagem não se deixa traduzir em dado.
Não é o conteúdo da arte que importa, mas sua capacidade de suspender o automatismo da percepção, de desobedecer ao fluxo constante de produção e consumo de sentido. A imagem que resiste à decodificação imediata, o poema que não se resolve, o silêncio entre duas notas: tudo isso são formas de fricção contra um construto de desempenho. Nesse atrito algo ainda pode arder como outra maneira de estar no mundo e não somente como espetáculo. Porque a arte é o instante em que algo cessa de obedecer, e esse rompimento pode tornar possível o que ainda não tem forma.
É por isso que insistir na subjetividade não é um capricho nostálgico, mas uma forma de insubmissão radical. Porque há algo no humano que não pode ser mapeado, nem previsto, nem traduzido. E é isso que o torna insuportável para os sistemas que tudo querem modelar. O que se evade, aqui, não é erro: é o resíduo indomável da criação. E é nele que a arte ancora sua força, não como um conforto mas como uma perturbação.
Onde tudo precisa funcionar, uma "ficção do subjetivo" descompassa. Lembra ao mundo que ainda há mundo por dizer. E entre dados e algoritmos, pulsa uma faísca impossível de apagar: frágil, imprópria, inclassificável, mas teimosamente viva, impedindo que nos tornemos código.
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